Thursday, October 13, 2005

Para Fotografia 2 - turmas A e B

Texto de apoio à aula de 26 (turma A) e 27 (turma B) de Outubro:

TEORIA DA ‘DÈRIVE’
Guy Debord

Uma das práticas base dos situacionistas é a ‘dérive’ [literalmente: 'deriva'], uma técnica de passagem rápida por ambientes variados. A ‘deriva’ implica um comportamento lúdico-construtivo e uma consciência dos efeitos psicogeográficos, sendo portanto bastante diferente das noções clássicas de viagem ou de passeio.
Numa ‘deriva’ uma ou mais pessoas durante um certo período de tempo esquecem as suas relações, o seu trabalho e actividades de lazer e todos os outros motivos habituais para movimento e acção, deixam-se guiar pelas atracções do terreno e pelos encontros que aí se processam.

O acaso, nesta actividade, é um factor menos importante do que podemos pensar: do ponto de vista da ‘deriva’, as cidades têm contornos psicogeográficos, com correntes constantes, pontos fixos e vortexes que desencorajam a entrada ou a saída em certas zonas.
Mas a ‘deriva’ inclui ao mesmo tempo o deixar-correr e a sua necessária contradição: o domínio das variações psicogeográficas através do conhecimento e cálculo das suas possibilidades.
Neste último aspecto, a ciência ecológica — apesar do estreito espaço a que se limita— fornece abundante informação à psicogeografia.
A análise ecológica do caracter absoluto e relativo das fissuras da rede urbana, do papel dos microclimas, dos subúrbios distintos sem relação com as fronteiras administrativas, e acima de tudo a acção dominante dos centros de atracção, podem ser utilizados e completados pelos métodos da psicogeografia. O terreno objectivo passional de uma ‘deriva’ tem que ser definido de acordo não só com a sua própria lógica, como também com as suas relações com a morfologia social.

No seu estudo ‘Paris e o aglomerado parisiense’ (Bibliothèque de Sociologie Contemporaine, P.U.F., 1952), Chombart de Lauwe nota: ‘os aglomerados urbanos são determinados não só por factores geográficos e económicos, mas também pela imagem que os seus habitantes e os de outros bairros têm deles’. No mesmo trabalho, e para ilustrar ‘ a pequenês do Paris real, no qual cada indivíduo vive, dentro de uma área geográfica cujo raio é extremamente limitado, ele traça o diagrama de todos os movimentos feitos por uma estudante que vive no 16me Arrondissement (16º Bairro). Os seus itinerários formam um pequeno triângulo sem desvios significantes, os três vértices são os da Escola de Ciências Políticas, a sua casa e a da professora de piano.

Estas informações — exemplos de poesia moderna capazes de provocar agudas reações emocionais (neste caso particular, ultraja o facto de a vida de alguém poder ser tão pateticamente limitada) — ou até a teoria das actividades sociais de Chicago de Burgess, como sendo distribuidas em zonas concêntricas distintas, provam indubitavelmente ser úteis no desenvolvimento de ‘derivas’.

Se o acaso tem um papel importante nas ‘derivas’ é porque a metodologia da observação psicogeográfica está ainda na sua infância. Mas a acção do acaso é naturalmente conservativa, e num contexto novo tende a reduzir tudo a hábitos ou a uma alternância entre um limitado número de variantes. O progresso significa aventurar-se através dos campos onde balança o acaso criando novas condições mais favoráveis aos nossos propósitos. Podemos dizer, então, que o acaso de uma ‘deriva’ é fundamentalmente diferente do de um passeio, mas também que as primeiras atracções psicogeográficas descobertas por ‘derivadores’ podem tender a fixá-los em torno de novos eixos habituais, para os quais serão constantemente atraídos.

Uma consciência insuficiente dos limites do acaso, e os seus efeitos inevitavelmente reaccionários, condenaram a um decepcionante falhanço a famosa tentativa de vaguear feita por quatro surrealistas em 1923 a começar numa cidade escolhida ao acaso: vaguear no campo aberto é naturalmente deprimente, e as intervenções do acaso são mais pobres que em qualquer outro sítio. Mas essa despreocupação é levada muito mais longe por um certo Pierre Vendryes (in Médium,
Maio de 1954), que pensa poder relacionar esta história a várias experiências de probabilidades, com base em que todas envolvem supostamente a mesma espécie de libertação antideterminista.
Ele dá um exemplo de distribuição ao acaso de girinos num aquário circular, acrescentando significativamente, ‘É necessário, é claro, que esta população não seja sujeita a nenhuma tentativa de condução exterior’.
Desta perspectiva, os girinos podem ser considerados mais espontaneamente libertados que os surrealistas, uma vez que têm a vantagem de ser ‘tão desprovidos quanto é possível de inteligência, sociabilidade e sexualidade’ e são assim ‘verdadeiramente independentes uns dos outros’.

No polo oposto a estas imbecilidades, o caracter primário da ‘deriva’ no seu elemento nas grandes cidades industrialmente transformadas — estes centros de possibilidades e significados — podem ser definidos pela frase de Marx: ‘Os homens não podem ver nada à sua volta que não seja a sua imagem, cada coisa lhes fala de si próprios. A sua própria paisagem está viva’.

Pode-se derivar sózinho, mas todas as indicações são que o arranjo numérico mais frutuoso consiste em vários pequenos grupos de duas ou três pessoas que chegaram ao mesmo nível de conscencialização, uma vez que contrapor as impressões desses diferentes grupos torna possível chegar a conclusões mais objectivas. É preferível para a composição destes grupos mudar de uma ‘deriva’ para outra. Com mais de quatro ou cinco participantes o caracter específico da ‘deriva’ diminui rapidamente, em qualquer caso é impossível para mais de dez ou doze pessoas sem que que a ‘deriva’ se fragmente em várias ‘derivas’ simultâneas. A prática desta subdivisão é, de facto, de grande interesse, mas as dificuldades que se apresentam evitaram, até agora, que ela fosse organizada em escala suficiente.

A duração média de uma ‘deriva’ é de um dia, considerado como o tempo entre dois períodos de sono. Os tempos de começo e final não têm necessariamente relação com o dia solar, mas deve-se notar que as últimas horas da noite são geralmente pouco apropriadas para ‘derivas’.

Mas esta duração é meramente uma média estatística. Por uma razão, a ‘deriva’ raramente ocorre na sua forma pura: é dificil para os participantes evitar pôr de parte uma ou duas horas no princípio ou no fim do dia para cuidarem de tarefas banais; e para o fim do dia a fadiga tende a encorajar o abandono. Mas, mais frequentemente a ‘deriva’ dá-se muitas vezes dentro de um período de tempo deliberadamente limitado a poucas horas, ou até fortuitamente durante momentos bastante breves; ou pode durar vários dias sem interrupção. A despeito das paragens impostas pela necessidade de dormir, certas ‘derivas’ de suficiente intensidade foram prolongadas por três ou quatro dias, ou até mais. É verdade que no caso de séries de ‘derivas’ sobre um bastante longo período de tempo é quase impossível determinar precisamente quando o estado de espírito peculiar de uma ‘deriva’ cede lugar a outro estado de espírito. Uma sequência de ‘derivas’ foi feita sem interrupções significativas por mais ou menos dois meses. Este género de experiência dá lugar a novas condições objectivas de comportamento que provocam o desaparecimento de um bom número das antigas. (1)

A influência do estado do tempo nas ‘derivas’, se bem que real, só é um factor significante no caso de chuvas prolongadas que as tornam virtualmente impossíveis. Mas, tempestades ou outro tipo de chuva são até favoráveis para ‘derivas’.

O campo espacial de uma ‘deriva’ pode ser delimitado com precisão ou pode ser vago, dependendo de se o objectivo é estudar um terreno ou desorientar-se emocionalmente. Não nos podemos esquecer que estes dois aspectos de ‘deriva’ se sobrepõem de tantas maneiras que é impossível isolar um deles num estado puro. Mas o uso de taxis, por exemplo, pode fornecer uma linha de separação suficientemente clara: se no decorrer de uma ‘deriva’ tomamos um taxi, seja para ir numa direcção específica ou simplesmente para nos movimentarmos, digamos, vinte minutos para oeste, estamos concentrados principalmente numa viagem pessoal para fora dos nossos caminhos habituais. Se, por outro lado, nos limitamos à exploração directa de um certo terreno, estamos essencialmente concentrados na investigação de um urbanismo psicológico.

Em todos os casos o campo espacial depende em primeiro lugar do ponto de partida — a morada do ‘derivador’ solitário, ou o ponto de encontro escolhido por um grupo. A área máxima deste campo espacial não se estende para além de uma grande cidade e dos seus subúrbios. No seu mínimo pode limitar-se a um espaço único: um único bairro ou até um só bloco de casas, se for suficientemente interessante, (sendo o caso extremo uma ‘deriva-estática’ de um dia inteiro dentro da estação de combóios de Saint-Lazare).

A exploração de um campo espacial fixo presupõe que se estabeleçam bases e se calculem direcções de penetração. É aqui que surge o estudo de mapas — mapas vulgares e também mapas ecológicos e psicogeográficos — assim como a correção e o melhoramento destes.

Não é preciso dizer que não estamos de modo algum interessados em nenhum mero exotismo que pode advir do facto de estarmos a explorar um bairro pela primeira vez. Além de não ser importante, este aspecto do problema é completamente subjectivo e desvanece-se rapidamente.

No ‘possível encontro marcado’, por outro lado, o elemento de exploração é mínimo em comparação com o da desorientação de comportamentos. Alguém é convidado a comparecer sózinho num certo lugar a uma determinada hora. Está livre das maçadoras obrigações de um ‘encontro marcado’ habitual uma vez que não está à espera de ninguém. Mas uma vez que esse ‘possível encontro marcado’o levou, sem aviso, a um lugar que pode conhecer ou não, ele observa o que o rodeia. Pode acontecer que o mesmo lugar tenha sido indicado para um ‘encontro marcado possível’ para alguém cuja identidade não tem nenhuma possibilidade de conhecer. Uma vez que ele pode nunca ter visto antes a outra pessoa, ele pode ser encorajado a começar a conversar com as várias pessoas que passem. Ele pode não conhecer ninguém, ou pode, por acaso, encontrar a pessoa que combinou o ‘possível encontro marcado’. Em todo o caso, particularmente se o tempo e o espaço foram bem escolhidos, o seu uso do tempo dará uma volta inesperada. Ele pode até telefonar a outra pessoa que não saiba onde o primeiro ‘possível encontro marcado’ o levou, para pedir que marque um outro ponto de encontro. Começam a ficar claros os recursos ilimitados deste passatempo.

O nosso despreocupado estilo de vida e até alguns divertimentos considerados duvidosos que sempre foram o prazer do nosso círculo — dormir à noite em casas para demolição, as nossas infindáveis viagens a pé e à boleia, sem destino, através de Paris durante uma greve de transportes para nos juntarmos à confusão, vaguear pelas catacumbas proibidas ao público, etc. — são expressões de uma sensibilidade mais geral que não é diferente da que leva à ‘deriva’. Descrições escritas podem não ser mais do que ‘passwords’ para este grande jogo.

As lições tiradas das ‘derivas’ tornaram-nos aptos a proceder aos primeiros levantamentos das articulações psicogeográficas de uma cidade moderna. Para além da descoberta de unidades de ambientes, das suas principais componentes e da sua localização espacial, acabamos por perceber os seus principais eixos de passagem, as suas saídas e as suas defesas. Chega-se à hipótese central da existência de pontos de charneira psicogeográficos. Mede-se as distâncias que efectivamente separam duas regiões de uma cidade, distâncias que podem ter pouquíssima relação com a distância física entre elas. Com a ajuda de velhos mapas, fotografias aéreas e ‘derivas’ experimentais, pode-se desenhar mapas de influências que faltavam até aqui, mapas cuja inevitável imprecisão, nesta primeira fase, não são piores que as primeiras cartas de navegação. A única diferença é a de que já não se trata de delinear com precisão continentes estáveis, mas sim arquitecturas e urbanismos mutáveis.

Hoje, as diferentes unidades de atmosferas e de habitações não estão precisamente demarcadas, mas sim rodeadas por regiões fronteiriças mais ou menos extensas e indistintas. A mudança mais geral que esta experiência de ‘deriva’ leva a propôr é a constante diminuição destas regiões fronteiriças, até se chegar à sua completa supressão.

Na própria arquitectura, o gosto pela ‘derivação’ tende a promover todas as espécies de novas formas de labirintos tornados possíveis pelas modernas técnicas de construção. Assim, em Março de 1955, a imprensa anunciou a construção em Nova Iorque de um prédio no qual podemos ver os primeiros sinais de uma oportunidade de ‘deriva’ dentro de um apartamento:

‘Os apartamentos deste prédia helicoidal teriam a forma de fatias de bolo. Teriamos a oportunidade de os aumentar ou diminuir trocando divisórias móveis. As gradações de meio-andar evitam a limitação do número de quartos, uma vez que o inquilino pode pedir o uso de uma secção adjacente no andar acima ou abaixo. Com esta disposição, três apartamentos de quatro quartos podem ser transformados num apartamento de doze quartos em menos de seis horas’.

(Terá continuação)
Guy Debord
1958

[Nota do tradutor]
1. “A ‘deriva’ (com a sua torrente de acções, os seus gestos, as suas deambulações, os seus encontros) estava para para a totalidade exactamente como a psicanálise (no seu melhor sentido) estava para a linguagem. Deixe-se levar pela corrente das palavras, diz o psicanalista. Ele ouve, até ao momento em que rejeita ou modifica (pode-se dizer torneia) uma palavra, uma expressão ou uma definição. A ‘deriva’ é seguramente uma técnica, quase uma terapia. Mas, como análise, sem ser acompanhada de mais nada, é quase sempre desaconselhada, e assim a ‘deriva’ contínua é perigosa na medida em que o indivíduo, que foi longe demais (não sem bases, mas…) sem defesas, está ameaçado de explosão, dissolução, dissociação, desintegração. E a partir daí o relapso naquilo a que chamamos ‘vida normal’, por assim dizer, na realidade, na ‘vida petrificada’. Sob este ponto de vista eu recuso agora a propaganda do Formulário para uma ‘deriva’ contínua. Pode ser contínua como o jogo do poker em Las Vegas, mas só por um determinado período, limitado a um fim de semana para algumas pessoas, a uma semana para a maioria; a um m~es é realmente exagerar. Em 1953-1954 nós ‘derivámos’ por três ou quatro meses seguidos. Isto é o limite extremo. É um milagre que isto não nos tenha matado.”
(Ivan Chtcheglov, “Letter from Afar,” Internationale Situationniste #9, p. 38.)

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